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4 DE OUTUBRO

32. SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Memória

– A pobreza de São Francisco. A pobreza no cristão corrente.

– A necessidade desta virtude nos nossos dias. Manifestações e modos de vivê-la.

– Frutos desta virtude.

São Francisco nasceu em 1182 na cidade de Assis (Itália), no seio de uma família abastada. Viveu e pregou infatigavelmente a pobreza e o amor de Deus a todos os homens. Fundou a Ordem dos Franciscanos; com Santa Clara, as Damas Pobres (Clarissas); e a Ordem Terceira, para os leigos. Morreu em 1226.

I. NUMA ÉPOCA em que eram grandes o brilho externo e o poder político e social de muitos eclesiásticos, o Senhor chamou São Francisco para que a sua vida pobre fosse um fermento novo naquela sociedade que, pelo seu apego aos bens materiais, se afastava cada vez mais de Deus. Com ele – afirma Dante – “nasce um sol para o mundo”1, um instrumento de Deus para ensinar a todos que a esperança deve estar posta apenas no Senhor.

Certo dia, rezando na igreja de São Damião, ouviu estas palavras: Vai e reconstrói a minha casa em ruínas. Tomando essa locução divina ao pé da letra, empregou todas as suas forças em recuperar aquela capela derruída e depois dedicou-se a reparar outros templos. Mas em breve compreendeu que a pobreza como expressão de toda a sua vida haveria de ser um grande bem para a Igreja. Chamava-a Senhora2, tal como os cavaleiros medievais chamavam as suas damas e como os cristãos se dirigem à Mãe de Deus.

A restauração da cristandade deveria vir pelo desprendimento dos bens materiais, pois a pobreza bem vivida permite colocar a esperança em Deus e apenas nEle. Num dia de fevereiro de 1209, em que ouviu as palavras do Evangelho: Não leveis ouro, nem prata, nem alforje..., Francisco teve um gesto insólito: para mostrar que nada tem valor quando se antepõe a Deus, despojou-se das suas roupas e do seu cinturão de couro, vestiu um basto saial, cingiu-se com uma corda e pôs-se a percorrer os caminhos, confiado na Providência.

A pobreza é uma virtude cristã que o Senhor pede a todos – religiosos, sacerdotes, mães de família, profissionais, estudantes... –, mas é evidente que os cristãos que estão no meio do mundo devem vivê-la de um modo bem diferente de como a viveu São Francisco e de como a vivem os religiosos que, pela sua vocação, devem dar um testemunho de certo modo público e oficial da sua consagração a Deus. O mesmo acontece com as demais virtudes cristãs – a temperança, a obediência, a humildade, a laboriosidade... –, que, sendo virtudes que devem ser vividas por todos os que querem seguir a Cristo, cada um deve aprender a viver de acordo com a sua vocação.

A pobreza do cristão corrente tem por base “o desapego, a confiança em Deus, a sobriedade, a disposição de compartilhar”3. O simples leigo deve aprender – como se aprende um caminho, uma rota que se deseja seguir – a compatibilizar “dois aspectos que, à primeira vista, podem parecer contraditórios: pobreza real, que se note e que se toque – feita de coisas concretas –, que seja uma profissão de fé em Deus, uma manifestação de que o coração não se satisfaz com coisas criadas, mas aspira ao Criador, desejando saturar-se de amor a Deus e depois dar a todos desse mesmo amor”4; e, ao mesmo tempo, a sua condição secular, que lhe exige que seja “mais um entre os seus irmãos os homens, de cuja vida participa, com quem se alegra, com quem colabora, amando o mundo e todas as coisas criadas, a fim de resolver os problemas da vida humana e estabelecer o ambiente espiritual e material que facilite o desenvolvimento das pessoas e das comunidades”5.

A virtude da pobreza e do desprendimento traduz-se na minha vida em pormenores concretos? Amo-a e pratico-a dentro das minhas condições pessoais? Estou plenamente convencido de que, sem ela, não posso seguir a Cristo? Posso dizer “sou verdadeiramente pobre em espírito”, por estar realmente desprendido daquilo que uso..., ainda que tenha bens, dos quais devo ser um simples administrador que prestará contas a Deus?

“Desapega-te dos bens do mundo. – Ama e pratica a pobreza de espírito. Contenta-te com o que basta para passar a vida sóbria e temperadamente.

“– Senão, nunca serás apóstolo”6.

II. AS PALAVRAS DO SENHOR ressoam em todos os tempos: Não podeis servir a Deus e às riquezas7. É impossível agradar a Deus, levá-lo por todos os caminhos da terra, se ao mesmo tempo não estamos dispostos a algumas renúncias – às vezes custosas – na posse e no gozo dos bens materiais. Esse aviso do Senhor pode parecer estranho numa época em que um desmedido afã de comodidades alimenta diariamente a cobiça das pessoas e das famílias. São muitos os que aspiram obsessivamente a ter mais, a gastar mais, a conseguir o maior número de prazeres possíveis, como se esse fosse o fim do homem na terra.

Na prática, essa pobreza real tem muitas manifestações. Em primeiro lugar, estar desprendidos dos bens materiais, desfrutando deles como bondade criada de Deus que são, mas sem considerar necessárias para a saúde e para o descanso coisas de que podemos prescindir com um pouco de boa vontade. “Temos que ser exigentes conosco na vida cotidiana, para não inventar falsos problemas, necessidades artificiais que, em último termo, procedem da arrogância, do capricho, de um espírito comodista e preguiçoso. Devemos caminhar para Deus a passo rápido, sem bagagem e sem pesos mortos que dificultam a marcha”8. Essas necessidades artificiais podem referir-se a instrumentos de trabalho, artigos esportivos, peças de vestuário, viagens de lazer bizarras, carros sempre do último modelo, objetos eletrônicos sofisticados, etc., etc.

Santo Agostinho aconselhava aos cristãos do seu tempo: “Procurai o suficiente, procurai o que basta. O resto é aflição, não alívio; esmaga, não levanta”9. Como o bispo de Hipona conhecia bem o coração humano! Porque a verdadeira pobreza cristã é incompatível com o supérfluo, com o excessivo. Se se desse esse apetite desordenado..., indicaria que a vida espiritual está deslizando a passo rápido para a tibieza, para a falta de amor.

A pobreza manifesta-se em cumprir acabadamente os afazeres profissionais; em cuidar dos instrumentos de trabalho – nossos ou dos outros –, da roupa, do lar modestamente instalado...; em evitar gastos desproporcionados, ainda que quem os pague seja a empresa onde trabalhamos; em “não considerar – de verdade – coisa alguma como própria”10; em escolher para nós o pior, se a escolha passa inadvertida11 (quantas oportunidades na vida familiar!); em evitar gastos pessoais motivados pelo capricho, pela vaidade, pela ânsia de luxo, pela comodidade; em sermos austeros conosco – na comida e na bebida – e sempre generosos com os outros.

Certo dia, São Francisco mandou erguer na capela do convento uma grande cruz e, ao colocá-la, disse aos seus frades: “Este deve ser o vosso livro de meditação”. O Poverello de Assis tinha compreendido bem onde estavam as verdadeiras riquezas da vida e o caráter relativo dos bens terrenos. Oxalá cheguemos a amar a virtude da pobreza com verdadeira paixão.

III. DA POBREZA DERIVAM muitos frutos. Em primeiro lugar, a alma prepara-se para os bens sobrenaturais e o coração dilata-se para ocupar-se sinceramente dos outros.

Peçamos hoje ao Senhor, por intercessão de São Francisco, a graça de compreendermos com maior profundidade que a pobreza cristã, vivida até às suas últimas conseqüências, é um dom que já tem o seu prêmio nesta vida. O Senhor dá à alma desprendida uma especial alegria, mesmo que lhe chegue a faltar o que lhe parece mais necessário. “Muitos se sentem infelizes, precisamente por terem demasiado de tudo. – Os cristãos, se verdadeiramente se comportam como filhos de Deus, poderão passar incomodidades, calor, fadiga, frio... Mas jamais lhes faltará a alegria, porque isso – tudo! –, quem o dispõe ou permite é Ele, e Ele é a fonte da verdadeira felicidade”12.

A verdadeira pobreza permite que nos desprendamos de nós mesmos para nos entregarmos a Cristo; é uma forma suprema de liberdade, que nos abre sem reservas nem restrições à amorosa Vontade de Deus, como nos ensina o próprio Cristo. Para amá-la – querermos ser pobres, quando tudo parece induzir-nos a querer ser ricos13 –, é necessário compreendermos bem que a pobreza enquanto virtude – como acontece com todas as virtudes – é algo bom e positivo: situa o homem em condições de viver segundo o querer de Deus, servindo-se dos bens materiais para conquistar o Céu e ajudar o mundo a ser mais justo, mais humano. “Divitiae, si affluant, nolite cor apponere – Se vierem às tuas mãos as riquezas, não queiras pôr nelas o teu coração. – Anima-te a empregá-las generosamente. E, se for preciso, heroicamente.

“– Sê pobre em espírito!”14

A virtude da pobreza é conseqüência da vida de fé. Na Sagrada Escritura, a pobreza expressa a condição de quem se colocou absolutamente nas mãos de Deus, deixando nelas as rédeas da sua vida, sem querer outra segurança. É a retidão de espírito de quem não quer depender dos bens da terra, ainda que os possua. É o firme propósito de não ter senão um só Senhor, porque ninguém pode servir a dois senhores15. Quando servimos as riquezas, o dinheiro, os bens terrenos – sejam de que tipo forem –, todos eles se convertem em ídolos. É essa idolatria da qual São Paulo dizia aos cristãos que nem sequer deveria ser mencionada entre eles.

Muitos cristãos vêem-se hoje tentados por essa idolatria moderna do consumo, que os leva a esquecer a imensa riqueza do amor de Deus. Nessa sociedade manietada e verdadeiramente carente, a nossa vida sóbria e desprendida servirá de fermento para levá-la a Deus, como São Francisco fez no seu tempo.

Ao terminarmos a nossa oração, pedimos ao Santo de Assis, com palavras de João Paulo II, que saibamos ser esse fermento no meio do mundo. Assim pedia o Papa diante do túmulo onde repousam as relíquias do Santo: “Tu, que tanto aproximaste de Cristo a tua época, ajuda-nos a aproximar de Cristo a nossa, os nossos tempos difíceis e críticos. Ajuda-nos! Aproximamo-nos do ano 2000 depois de Cristo. Não serão tempos que nos preparem para um renascimento de Cristo, para um novo Advento?”16 A Virgem Nossa Senhora há de ensinar-nos a ser protagonistas deste novo renascer, mediante uma vida sóbria e austera.

(1) Dante Alighieri, A divina comédia, Paraíso, XI, 5, 54; (2) cfr. São Francisco de Assis, Testamento de Sena, 4; (3) S. C. para a Doutrina da Fé, Instr. Sobre a liberdade cristã e a libertação, 22-III-1986, 66; (4) Josemaría Escrivá, Questões atuais do cristianismo, n. 110; (5) ib.; (6) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 631; (7) Lc 16, 13; (8) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 125; (9) Santo Agostinho, Sermão 85, 6; (10) cfr. Josemaría Escrivá, Forja, n. 524; (11) cfr. Josemaría Escrivá, Caminho, n. 635; (12) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 82; (13) Conferência Episcopal Espanhola, Instr. Past. La Verdad os hará libres, 20-XI-1990, n. 18; (14) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 636; (15) cfr. Mt 6, 24; (16) João Paulo II, Homilia em Assis, 5-XI-1978.

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