TEMPO COMUM. VIGÉSIMO DOMINGO. CICLO C
66. O FOGO DO AMOR DIVINO
– Fé no amor que Deus tem e sempre teve por nós.
– O amor pede amor, e este demonstra‑se com obras.
– Atear o amor de Deus nos outros.
I. O FOGO APARECE freqüentemente na Sagrada Escritura como símbolo do Amor de Deus, que purifica os homens de todas as suas impurezas1. O amor, como o fogo, nunca diz basta2, tem a força das chamas e ateia‑se no trato com Deus: Ardia‑me o coração dentro do peito, ateava‑se o fogo na minha meditação3, exclama o Salmista... No dia de Pentecostes, o Espírito Santo – o Amor divino – derrama‑se sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo4 que lhes purificam o coração, os inflamam e os preparam para a missão de estender o Reino de Cristo por todo o mundo.
Jesus diz‑nos hoje no Evangelho da Missa: Vim trazer fogo à terra, e que hei de querer senão que arda?5 Em Cristo, o amor divino alcança a sua máxima expressão: Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu o seu Filho Unigênito6. Jesus entrega voluntariamente a sua vida por nós, e ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos7. Por isso confidencia‑nos também a impaciência santa que o domina enquanto não vir cumprido o seu batismo, a sua própria morte na Cruz pela qual nos redime e nos eleva: Tenho que ser batizado com um batismo, e como me sinto ansioso enquanto não se realizar!
O Senhor quer que o seu amor se ateie no nosso coração e provoque um incêndio que o invada por completo. Ama‑nos com um amor pessoal e individual, como se cada um de nós fosse o único objeto da sua caridade. Em nenhum instante cessou de amar‑nos, de ajudar‑nos, de proteger‑nos, de comunicar‑se conosco; não só quando correspondíamos às suas graças, mas também quando nos afastávamos dEle, entregues à pior de todas as ingratidões que é o pecado. O Senhor sempre nos mostrou a sua benevolência. Ele, que é infinito e infinitamente simples, não nos ama a meias, mas com todo o seu ser; ama‑nos sem medida. Este mistério de amor realizou‑se de uma maneira absolutamente excepcional na sua Mãe, Santa Maria.
A Virgem, nossa Mãe, é o espelho em que devemos olhar‑nos. Viveu uma vida normal, de tal maneira que os seus conterrâneos e familiares nunca puderam imaginar o que se passava no seu coração; nem sequer José o teria sabido, se Deus não lho tivesse manifestado. Quando lhe foi revelado, na Anunciação, até que ponto era amada por Deus, Maria acreditou nesse amor que a escolhia para Mãe do Verbo encarnado. Que grande fé a sua, ao pensar que nela estava a salvação de Israel, muito mais, sem comparação possível, do que em Judite ou em Ester em outros momentos da história de Israel! Mas a Virgem não só acreditou no amor de absoluta predileção divina, como acreditou sem limite algum.
Santa Maria ensina‑nos a crer no amor sem limites de Deus e anima‑nos a examinar a nossa correspondência a esse amor, pois “não é razoável que amemos com tibieza um Deus que nos ama com tanto ardor”8. O nosso coração é uma fogueira de chamas vivas, como o da Virgem, ou apenas um rescaldo de tibieza, de mediocridade conformista?
Deus me ama, e esse é o dado fundamental da minha existência. O resto tem pouca ou nenhuma importância.
II. O AMOR RECLAMA AMOR, e este demonstra‑se por meio de obras, pelo empenho diário em chegar ao trato íntimo com Deus e por identificar a vontade própria com a dEle. A segunda Leitura9 anima‑nos a esta luta diária, sabendo que estamos rodeados por uma tão grande nuvem de testemunhas: os santos, que presenciam o nosso combate, e todos aqueles que temos ao nosso lado e a quem tanto podemos ajudar com o nosso exemplo. Sacudindo todo o lastro que nos detém e o pecado que nos envolve – continua a Leitura –, corramos com perseverança pelo caminho que nos é proposto, pondo os olhos no autor e consumador da fé, Jesus. É nEle que cravamos os olhos, como o corredor que, uma vez começada a corrida, não se deixa distrair por nada que lhe desvie a atenção da meta; assim, afastaremos com decisão e energia toda e qualquer ocasião de pecado, pois ainda não resististes até o sangue, combatendo contra o pecado. Temos de chegar até esse ponto, se for preciso, mesmo que se trate apenas de não cometer um simples pecado venial. É melhor morrer do que ofender a Deus, por mais leve que seja a ofensa.
Temos que dizer sim ao Amor; temos que dar‑lhe uma resposta afirmativa nas mil pequenas situações diárias: ao negarmo‑nos a nós mesmos para servir os que convivem ou trabalham conosco, na mortificação pequena, que nos ajuda a dominar a impaciência e a irritação; na pontualidade em todos os nossos compromissos espirituais e humanos; no esforço com que procuramos melhorar o recolhimento interior nos tempos dedicados à oração mental; na aceitação alegre dos contratempos, quando a vontade de Deus não confirma os nossos planos ou o nosso querer... Assim se forjam as pequenas vitórias que Deus espera todos os dias daqueles que o amam. Mas também por amor temos que dizer não muitas vezes: à curiosidade da vista; ao corpo que pede mais conforto e menos sacrifício; ao desejo de encerrar o expediente antes da hora... Muitas são as sugestões, as moções do Espírito Santo que nos convidam a corresponder a esse Amor infinito com que Jesus nos ama.
O amor expressa‑se na dor dos pecados, na contrição, pois tantas vezes – sem o percebermos – dizemos não ao amor e sim aos nossos caprichos... São ocasiões para fazermos um ato de dor mais profundo pelas coisas em que não soubemos corresponder, e para desejarmos muito essa Confissão freqüente na qual sempre encontramos a Misericórdia divina e o remédio para os nossos males. “Quem não se arrepende de verdade não ama de verdade; é evidente que, quanto mais estimamos uma pessoa, tanto mais nos dói tê‑la ofendido. É este, pois, mais um dos efeitos do amor”10, diz São Tomás de Aquino.
E voou para mim um dos serafins, o qual trazia na mão uma brasa viva que tinha tomado do altar com uma tenaz. E tocou a minha boca e disse‑me: Eis que esta brasa tocou os teus lábios; e foi tirada a tua iniqüidade e perdoado o teu pecado11. Pedimos ao Senhor que o fogo do seu amor purifique a nossa alma de tanta sujidade e nos abrase por completo: “Ó Jesus..., fortalece as nossas almas, aplaina o caminho e, sobretudo, embriaga‑nos de Amor! Converte‑nos assim em fogueiras vivas, que incendeiem a terra com o fogo divino que Tu trouxeste”12.
III. NÓS, CRISTÃOS, devemos ser fogo que queime os outros, como Jesus abrasou os seus discípulos. Ninguém que nos tenha conhecido deverá permanecer indiferente; o nosso amor tem de ser fogo vivo que converta em pontos de ignição, em outras tantas fontes de amor e de apostolado, todos aqueles com quem convivemos. O Espírito Santo soprará, através de nós, em muitos que pareciam apagados, e do seu rescaldo de vida cristã sairão chamas que se propagarão em ambientes que de outro modo teriam permanecido frios e mortos.
Pouco importa que pareça que valemos pouco, que não podemos fazer quase nada, que não sabemos, que nos falta formação. O Senhor só quer contar totalmente com cada um. Não esqueçamos que uma faísca minúscula pode dar início a uma grande fogueira. Como é grato ao Senhor que lhe digamos na intimidade da nossa alma que somos inteiramente dEle, que pode contar com o pouco que somos!
“Escrevias: «Eu te ouço clamar, meu Rei, com viva voz, que ainda vibra: ’Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur?’ – vim trazer fogo à terra, e que quero senão que arda?»
“Depois acrescentavas: «Senhor, eu te respondo – eu inteiro – com os meus sentidos e potências: ’Ecce ego quia vocasti me!’ – aqui me tens porque me chamaste!»
“– Que esta tua resposta seja uma realidade cotidiana”13.
O verdadeiro amor a Deus manifesta‑se imediatamente numa intensa atividade apostólica, em desejos de que muitos outros conheçam e amem a Jesus Cristo. “Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa expande‑se em ímpetos de ação apostólica: Ardia‑me o coração dentro do peito, ateava‑se o fogo na minha meditação (Ps XXXVIII, 4). Que fogo é este, senão o mesmo de que fala Cristo: Fogo vim trazer à terra e que hei de querer senão que arda? (Lc XII, 49). Fogo de apostolado, que se robustece na oração [...]”14, no trato íntimo com Cristo.
É aí que se alimentam as ânsias apostólicas. Junto do Sacrário, teremos luz e forças; falaremos a Jesus dos filhos, dos pais, dos irmãos, dos amigos, dos colegas na Universidade ou no colégio, daquela pessoa que acabamos de conhecer, das que encontraremos hoje por motivos profissionais ou nos pequenos acasos da vida diária. Nenhuma pessoa deverá partir de mãos vazias; a todas, de um modo ou de outro, com a palavra, com o exemplo, com a oração, deveremos anunciar‑lhes Cristo que as procura, que as espera e que se serve de nós como instrumentos.
“Ainda ressoa no mundo aquele clamor divino: «Vim trazer fogo à terra, e que quero senão que arda?» – E bem vês: quase tudo está apagado...
“Não te animas a propagar o incêndio?”15
Dizemos a Jesus que conte conosco, com as nossas poucas forças e os nossos escassos talentos: Ecce ego quia vocasti me, aqui me tens porque me chamaste. E pedimos a Santa Maria, Regina Apostolorum, que saibamos ser audazes nesta tarefa de dar a conhecer o amor de Cristo.
(1) cfr. J. Dhelly, Diccionario Biblico, verbete Fuego, pág. 472 e segs.; (2) Prov 30, 16; (3) Sl 38, 4; (4) At 2, 2‑4; (5) Lc 12, 49; (6) Jo 3, 16; (7) Jo 15, 13; (8) Santo Afonso Maria de Ligório, Visita ao Santíssimo Sacramento, 4; (9) Hebr 12, 1‑4; (10) São Tomás, Sobre a caridade, 205; (11) Liturgia das horas, Ofício das leituras; cfr. Is 6, 1‑13; (12) Josemaría Escrivá, Forja, n. 31; (13) ib., n. 52; (14) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 120; (15) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 801.